Página IncialArtigos e discursosDiscurso na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, ao receber o titilo de cidadão honorário.

Discurso na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, ao receber o titilo de cidadão honorário.

Antes de mais nada, agradeço, reverente, ao amigo e governador Luís Henrique a iniciativa de propor este título. Aos senhores deputados, o meu reconhecimento pela concessão. Muito obrigado. Saberei honrar tão elevada distinção.

Gostaria de fugir um tanto do scriptus a acontecimentos como este. Mais que falar da honraria, do quanto me envaidece ser inscrito nos documentos desta casa como cidadão catarinense, permitam-me algumas digressões sobre os dias que nos dão a viver. Mesmo porque passei quase toda a semana passada em Brasília. E ninguém que passe alguns dias em Brasília, por palácios e ministérios, resta imune de pensar sobre a vida, de perguntar de onde viemos, quem somos, que fazemos aqui, qual o nosso destino. Brasília dá o que pensar.

Embora possa ser pessimista no diagnóstico, à moda de Gramsci, sou otimista quanto às nossas possibilidades de romper os entraves, as amarras que ainda nos condicionam ao subdesenvolvimento, à pobreza, à submissão aos ditames do mercado, à mediocridade dos chamados fundamentos da macroeconomia.

Na verdade, não há como não ser pessimista. É claro, se formos cegados, trapaceados por um ou outro número conjuntural é possível um meio sorriso. Também conjuntural.

O crescimento do PIB, por exemplo, apesar de mediano, entusiasma os espíritos menos exigentes. E existe também aqueles que brindam cada ponto a menos do chamado “risco Brasil”.

Isso me faz lembrar de uma tira de humor publicada por alguns jornais brasileiros, que tem como personagens Frank e Ernest, uma dupla normalmente em situações de miséria, de pobreza extrema, mas que vibra intensamente a cada notícia de alta das Bolsas, de grandes fusões de empresas, de lucros fantásticos dos conglomerados transnacionais.

Somos um pouco Frank e Ernest, excitados, tocados pela grandiosidade do banquete a que não somos convidados.

E o pior de tudo é a orquestração feita pela grande mídia, sempre fazendo crer aos brasileiros –todos os brasileiros, inclusive aos Frank e Ernest pátrios- que isso é de interesse de geral. Que não existe possibilidade de vida fora do círculo traçado pelos interesses do mercado. Que as nossas vidas e destinos são guiados pelas cotações das Bolsas, pelas notas da Moody’s, do J. P. Morgan, pelos humores dos especuladores, pela oscilação da temperatura em Nova York, Tóquio, Xangai ou Frankfurt.

Paulo de Tarso, para convencer os primeiros cismáticos do cristianismo, os dissidentes e fiéis recalcitrantes proclamou e transformou em dogma: “Não há salvação fora da Igreja”. Hoje, tentam impor o mesmo preceito: “Não há salvação fora do mercado”.

É inevitável que faça um paralelo, mesmo também acreditando que a história não se reproduza, a não ser como farsa. Nos tempos mais trevosos da história humana, nas sombrias noites medievais, filósofos e teólogos proclamaram o fim da história. Diziam que o homem havia atingido o ápice de seu desenvolvimento, que a civilização havia resolvido suas contradições e alcançara a plenitude. Que daí por diante era só rezar e esperar a segunda vinda do salvador .

Hoje, nesses dias também tão opacos e medíocres, tentam reeditar a mesma pobre, enfadonha, ridícula e mesquinha treta. E a patranha, a mistificação não vem embalada apenas pelo besteirol daquele desfrutável autor nipo-americano. Jorra diariamente nos editoriais dos estadões e estadinhos, das folhas e folhetins, nos jornais nacionais e nos faustões, nas novelas e novenas. Não existe outro mundo que o universo do mercado. Não há outros fiéis que os adoradores das blue chips.

Caso alguém considere que esteja exagerando, carregando nas tintas, olhe ao redor, folheie os jornais, ouça as rádios e aprecie os comentaristas das tvs. Que monotonia, que sensaboria, que insipidez. Todos são unânimes quanto às transcendentais e acendradas virtudes dos tais fundamentos da macroeconomia.

Quando muito podem divergir das vírgulas que são apostas às taxas de juros, as porcentagens das metas da inflação, os números do tal superávit primário. No entanto, jamais vão descombinar, vão dissentir dos princípios da política econômica, do receituário neo-liberal.

O máximo que se permite é que um ministro e outro divirtam-se, distraiam-se com manifestações supostamente desconformes com o vade-mécum mercantil.

Por onde lancemos a vista, a mesma e repetitiva paisagem. Ditos socialistas, trabalhistas, social-democratas, a tal “esquerda responsável”, todos no mesmo iate com os liberais,com os neo-liberais, com a dita “direita civilizada”.

As discordâncias, tão pequenas e tão localizadas, são tratadas com a mesma virulência – e, com freqüência, com a mesma insana e implacável violência- da barbárie medieval. Ridicularizam, desclassificam, segregam, isolam os que gritam a nudez do rei.

Nenhum país da periferia do mundo dos ricos avançou, desenvolveu-se, distribuiu renda, venceu a pobreza, reincluiu os marginalizados, eliminou as endemias com as prescrições neo-liberais. Isso é fato, um fato tão terrivelmente verdadeiro, irretocável que os próprios organismos financeiros internacionais e as tais agências de desenvolvimento reconhecem.

Por que então persistimos no erro? Porque então fazemos de um retumbante fracasso como o plano de estabilização fernandista uma vaca sagrada, venerada, incensada, intocada? Fracasso mascarado pelos tantos programas de assistência -nacionais, estaduais e municipais- que compensam a exclusão dos trabalhadores, do povo, das preocupações da macroeconomia.

Se a renda não foi distribuída, se os trabalhadores não tiveram ganhos reais, se os mesmos 30 por cento de brasileiros continuam abaixo da linha da pobreza, se o saneamento básico é ainda tão deficiente, se as doenças que imaginávamos extintas renascem aqui e ali como corolário da miséria, se os analfabetos ainda somam milhões, se a violência, especialmente a decorrente do tráfico de drogas e da ação do crime organizado transforma o espaço urbano em ruelas e trincheiras de guerra civil, se a vida é tão provisória, se o desemprego continua recrutando tantos milhões de trabalhadores para o exército de reserva do capital, se a reforma agrária permanece ainda tão estigmatizada quanto aqueles que antigamente comiam criancinhas, se quem ganha três salários mínimos foi alçado à condição de privilegiado cidadão de classe média, se tudo isso e mais um pouco de que valem , para quem servem, quem se empanturra com os fundamentos tão sacrossantos da macroeconomia?

Senhoras, senhores, por incrível que pare
ça, vez em quando eles ainda sacam da algibeira ou do colete –que a mentalidade deles é do tempo da algibeira, do colete e da casaca- a história do bolo que deve ser fermentado, antes de repartido. Por mais ultrajante, afrontoso, insultante que isso seja buscam aplacar sua má consciência com acenos a um futuro róseo que jamais virá.

Outra atitude muito comum é o otimismo sem causa. Essa coisa panglosiana, fronteiriça dos que acreditam que tudo vai melhorar, deixando tudo como está. Daí para acreditar em cegonha, Papai Noel e duendes é meio passo.

De todo modo, se a nossa sensibilidade, a nossa alma e o nosso coração foram impermeabilizados pela indiferença, pelo cinismo ou pelo oportunismo, que prevaleça a máxima lampedusiana.

Como não somos feitos assim, precisamos reagir. Não se trata de uma questão ideológica. É uma questão de humanidade, decorrente da nossa condição de seres humanos. A globalização, à medida que ao mercado interessa tão-somente o lucro, é a barbárie, é a anti-civilização.

Meio ambiente, história, cultura, identidade nacional, o nosso país, o nosso projeto de vida, o nosso espaço, a nossa individualidade, os nossos sonhos, a sublime, grandiosa, magnífica e santa utopia que embala o homem há tanto tempo e que sonha com um mundo harmonioso, fraterno, feliz, sem explorados e exploradores, tudo isso é triturado pelo tropel desses novos hunos.

A idéia de que seja possível, nesta planeta já não tão azul, já tão desbotado, a idéia de que seja possível a reprodução de modelos como os americano, europeu ou japonês é muito mais perigosa, mais danosa que mil átilas varrendo a terra com atroz selvageria.

Há uma incompatibilidade in limine entre a sobrevivência do planeta e a construção de outros modelos de consumo como os existentes. Não há matéria-prima, não há energia, não há florestas, não há água, não há mares, rios ou oceanos, não há vida sobre a terra que suporte esse desenfreio. Os que existem já são um peso insuportável para o planeta e qualquer adição haverá de adernar a terra irrecuperavelmente.

Se é assim, se estamos cientes de que assim seja, por que persistimos em um caminho que não nos levará a lugar algum? Por que a teimosa insistência em padrões, em referências inexeqüíveis?

O que é o oposto? A condenação à pobreza, ao subdesenvolvimento, ao atraso, à exclusão do consistório dos ricos, como tentam nos fazer crer?

Não. O oposto é a busca da nossa própria identidade. A construção da nação brasileira. Com as nossas próprias forças, com a nossa energia, com a nossa infinda capacidade de criar e transformar.

Um povo que sobrevive nas condições em que estamos estacionados há tantos séculos, esse povo tem valentia, disposição, coragem e determinação para construir seu próprio caminho.

Brasil nação para nós. Não o Brasil país para os outros, reproduzindo as condições coloniais quando não éramos mais que um empreendimento mercantil a serviço dos negócios globais.

Há nessa corrida toda à produção de combustível a partir da cana-de-açucar – o megaespeculador George Soros já comprou um naco de nosso país para plantar cana- uma triste e constrangedora ironia. Vejam. Qual foi primeiro produto brasileiro globalizado, que inaugurou a nossa história de país para os outros, de mercado para os outros? Foi a cana-de-açucar.

Pois é, tantos séculos depois voltamos a plantar cana para os outros. Na letra premonitória de Chico Buarque de Holanda, vamos nos transformar em um “imenso canavial”. Para quem?

( Faço aqui um parênteses para declarar que não me oponho terminantemente à produção do biocombustível. Oponho que o espaço da produção de alimentos seja invadido sem limites, sem freios pelos canaviais e que o Brasil não seja mais que um fornecedor de álcool para abastecer as colossais e irracionais frotas de veículos das potencias globais).

Governador Luís Henrique, presidente Júlio Garcia, senhoras e senhores deputados, senhores secretários de Estado. Senhoras e senhores. São as reflexões que gostaria de compartilhar. Desculpem-me se estréio minha condição de cidadão catarinense dessa forma gramsciana. Culpa do Luís Henrique que mesmo me conhecendo há tanto tempo propôs o título. A minha mulher, a Maristela, que é catarinense, bem que podia te-los advertido.

Senhoras, senhores. De qualquer forma, sejamos otimistas. Há saídas, há outros caminhos. Não há noites eternas. O homem, que arrostou tantas dificuldades ao longo do processo de construção da civilização, vencerá mais uma vez. Os brasileiros que têm sobrevivido e não esmorecem por piores que sejam as condições de vida que se lhe dão a enfrentar, vencerá.

Muito obrigado.